Um dia depois de escrever sobre a brutalidade cometida sobre um boçal que matou uma pessoa jogando um vaso sanitário sobre a cabeça dela, me sinto obrigado a comentar outro caso absurdo que, aos poucos, vai sendo esquecido (deve ser porque já aconteceu há "muito tempo"; no último final de semana).
Falo da morte de uma mulher, no Guarujá, litoral de São Paulo, linchada por vizinhos que acreditaram num boato de que ela mataria crianças para cometer atos satânicos. Um boato espalhado numa rede social e que se transformou numa das cenas mais brutais a que assisti nos últimos tempos.
As imagens são extremamente fortes e estão disponibilizadas no vídeo abaixo. É preciso ter muito sague frio para assistí-las.
Fico pensando no que leva um sujeito a pegar uma viga de concreto e atingir a cabeça de outro ser humano. Se isso não é uma expressão viva da barbárie, não sei o que é.
Parece que nossa sociedade vive com um isqueiro numa mão e um pavio (curtíssimo) na outra. E, infelizmente, as duas mãos tem se unido muito mais vezes do que deveriam.
Em fevereiro usaram uma tranca de bicicleta para prender um pivete num poste no Rio de Janeiro. Muita gente bateu palmas.
Em Teresina, no Piauí, um assaltante foi amarrado e colocado sobre um formigueiro. Pessoas comemoraram seus urros de dor.
E assim vão se sucedendo os justiçamentos. A justiça feita pelas próprias mãos. A justiça sem justiça que tenta se justificar pela precariedade do sistema de segurança e pela lentidão do Judiciário.
Na TV Brasil produzimos uma edição do Programa 3 a 1, sobre o tema e relembro aqui, duas falas de nossas convidadas:
“O país está vivendo esta epidemia porque a população se deu conta, de
repente, que nós não temos segurança. E nós não temos ninguém para nos
proteger. Quando isso acontece, que você tem uma polícia que não
responde aos anseios da sociedade, que não funciona e deixa tudo
acontecer, as pessoas pensam: se ela não funciona, funciono eu. Isso é
perigosíssimo." - Yvonne Bezerra de Melo, educadora
"Quem apoia os justiceiros não se dá conta de que pode ser o próximo
alvo. Hoje são supostos bandidos, amanhã homossexuais, e depois? Ao
entregar o uso da força a esses grupos, essa parcela da população não se
dá conta de que assina um cheque em branco, porque são eles que vão
definir as regras, não você. Essa imprevisibilidade de regras produz o
terror. É um movimento conhecido na História, e justamente por isso
foram criadas a polícia e o Judiciário", Jaqueline Muniz, antropóloga.
Reproduzo aqui no blog, também, o comentário do jornalista Ricardo Boechat, de hoje pela manhã, na Band News. Um raciocínio lúcido que não deixa de fora a parcela de culpa de boa parte de nossa mídia, com seus apresentadores "justiceiros". Aqueles que vociferam exigências de justiça, custe o que custar. Não vou citar nomes até porque todos sabem quem são. Eles pululam em cada grande cidade de nosso país, cada um com seu bordão, com seu gestual espalhafatoso, petulantes, como que outorgados por uma força maior (ou apenas pela mídia que representam) para assumir a "defesa da população".
http://noticias.band.uol.com.br/cafe-com-jornal/video/15022586/boechat-comenta-o-caso-da-mulher-linchada-apos-boato-no-facebook.html
Não se pode calar sobre o tema. Não se pode aceitar o "olho por olho, dente por dente".
Até porque a justiça feita pelas prórpias mãos, infelizmente, não se resume aos fatos aqui citados ou outros mais que chegam à mídia.
Os Esquadrões da Morte são uma realidade por esse país afora. Gente que mata para quem pagar mais.
Também em fevereiro foi divulgado, pelo jornal Extra, um vídeo de uma execução de um suposto assaltante a sangue frio, em plena luz do dia, na Baixada Fluminense.
https://www.youtube.com/watch?v=jCAQaO2Xjx0
É simples assim e fica tudo por isso mesmo.
A prática é antiga, mas se popularizou nos anos 60 com a, então famosa, Scuderie Le Cocq, criada para vingar a morte em serviço de Milton Le Cocq, detetive da polícia carioca e que se transformou em uma autoridade parda para eliminar o crime na cidade. As bençãos eram dadas pelo próprio Secretário de Segurança
Pública do Rio de Janeiro, Luis França.
Um dos mais famosos desses matadores foi o temido Mariel Mariscot.
No currículo desses Esquadrões também está a conivência com a Ditadura Militar instalada no Brasil com o golpe de 1964. Muitos dos "inimigos" do poder sumiram graças a esses "justiceiros"
A banalidade é o que mais me preocupa.
Hoje aceitamos dar uns cascudos no pivete, amanhã achamos normal amarrar alguém tal e qual se amarrava escravos fujões em pelourinhos. Depois de amanhã, mutilações serão corriqueiras. E em um breve tempo, o linchamento até a morte não será mais notícia.
Não, amigos, não estou exagerando.
Se um mero boato gera aquelas cenas grotescas que vimos e a morte de uma mãe de duas meninas, que para sempre ficarão marcadas por esse drama, é hora de acendermos todas as luzes de alerta que pudermos.
E como disse o Boechat, nossos "comunicadores" poderiam se conscientizar sobre a força de suas palavras e como elas podem armar os espíritos de uma população que lhe vê faltar tanta coisa.
Mas, para isso, seria preciso desvestir o personagem. Para isso seria preciso abrir mão da disputa pelos míseros pontos de IBOPE que mudam minuto a minuto. Para isso seria preciso pensar no jornalismo como algo que pode construir uma realidade melhor.
E, infelizmente, a cada dia, parecemos estar mais longe disso.