O ser humano sempre teve fascínio pelo mundo animal.
Fascínio e medo.
Infelizmente, o medo sempre foi maior e fez com que o homem,
armado, se transformasse, ele sim, no predador. Os bichos que não matava,
prendia e exibia em circos ou zoológicos. A admiração por eles garantia as
bilheterias.
Ontem vivi essa fascinante experiência de ver uma onça em
ação. Eu e mais algumas centenas de pessoas. Era o “Recital da Onça”, de Regina
Casé.
Tal e qual os índios Tamoios, trazidos pela leitura do texto
de Alberto Mussa, a onça Regina, em quase duas horas de um domínio absurdo do
palco, abre nossas cabeças para a arte, para a literatura e para o prazer. E,
tal e qual os Tamoios, vai ganhando suas pintas de onça a cada aplauso, a cada
olhar iluminado, a cada sorriso que brota da plateia.
A naturalidade dessa onça nos desconcerta, nos tira da
posição de mero espectador, nos faz esquecer do teatro em que estamos. Regina
nos pega pela mão, pelo coração. Passamos a ouvi-la, sem saber muito bem o que
é texto, o que é “caco”, o que é uma conversa com a plateia, que se sente como
se estivesse sentada numa sala de estar, numa mesa de bar, ouvindo as histórias
daquela interlocutora envolvente e hipnotizante.
Uma coisa engraçada que sempre me perguntam quando sabem que
sou primo de Regina Casé é: “Ela é daquele jeito mesmo que aparece na TV?”. E a
resposta é sempre a mesma, Regina é assim. Daí juntar tanta gente, de tantas
tribos, mesmo num país tão dividido, em torno de si.
Acusada, junto com a turma do “Asdrúbal trouxe o trombone”
de fazer um teatro carioca, Regina mostrou, em 45 anos de carreira, que é a cara
do Brasil. E os brasileiros se veem nela desde os tempos de “Brasil Legal”,
quando sua trupe viajava pelo país mais profundo, mostrando a gente quase
invisível que vive por lá. O Caldeirão é do Huck, mas ninguém na TV brasileira
conseguiu misturar na mesma receita tantos brasis como Regina; o “Muvuca” e o
“Esquenta” foram provas disso.
Nas telas dos cinemas como ser mais brasileira do que a
Darlene de “Eu, tu, eles” ou a Val de “A que horas ela volta”?
Mas é no teatro que a gente vivencia isso de perto.
Quando ela vendia ingressos das peças do “Asdrúbal” nos
almoços de Natal na casa de meus avós, eu ainda não tinha idade para ir (Regina
é 9 anos mais velha que eu). Quando "Trate-me Leão" sacudiu a cena
teatral, eu tinha só 14 anos. Ainda bem que pude assistir a “Aquela coisa toda”
e “A farra da terra” (até hoje sei de cor algumas das músicas do espetáculo).
Mas desde o delicioso monólogo Nardja
Zulpério (que vi no antigo Casa Grande) estava fora dos palcos.
Na estreia do “Recital da Onça”, porém, todo esse tempo
distante do olho no olho com a plateia desapareceu assim que entrou em cena. A
cada texto lido, de Mário de Andrade a Fausto Fawcet, de Guimarães Rosa a
Vinícius de Morais, vimos a onça circular, pra lá e pra cá. Como se sentisse as
duas únicas palavras que acompanham cada passo desse felino: bom, bonito, bom,
bonito, bom, bonito...