quinta-feira, 28 de março de 2019

A DOR QUE SUPERA A CEGUEIRA

A DOR QUE SUPERA A CEGUEIRA


A possibilidade de se tornar invisível já rendeu o sucesso de muitas histórias na ficção, mas, infelizmente, quando a invisibilidade é real e as tramas de uma dramaticidade absurda, o silêncio é que prevalece.

Nos grandes centros urbanos o que não falta é gente invisível: homens e mulheres esparramados pelas calçadas, muitos desacordados pela desilusão, cansaço, bebida ou tudo isso junto. Meninos e meninas entorpecidos por solventes vagam sem rumo. Famélicos sobrevivem com os restos de nossa sociedade. Todos estão ali, na nossa frente. Todos os dias, os vemos, mas não os enxergamos. Nem nós, nem as autoridades que a elas, como a qualquer cidadão, deveriam dar atenção. 




Nós, que temos o privilégio de não passar por situação semelhante, vamos nos esquivando desses seres, sem muito pensar, convivendo com a dor alheia. Contudo, para a manutenção de nossa sanidade emocional e mental, desviamos o olhar e seguimos em frente.

Mas na noite dessa quarta-feira, dia 28 de março de 2019, a realidade veio atrás de mim, literalmente. Deixava a Uerj, cantarolando algo e quando fui entrar no carro, fui surpreendido pela presença de uma jovem. Ela, ao ver meu espanto se desculpou pelo susto e, em seguida, começou seu triste relato.
Sabia, claro, que seu intuito era pedir alguma ajuda financeira, mas ao vê-la, frágil como estava, física e emocionalmente, deixei que falasse. Foram pelo menos dez minutos em que me contou sobre ela, as duas filhas especiais, a ajuda de uma senhora que tirou as três das ruas e outras agruras.
Não a interrompi em nenhum momento. Vi que precisava falar. Não se arriscava a deixar qualquer brecha para que eu balbuciasse uma desculpa e me fosse. 

Contou que fora dependente de drogas, mas que estava limpa há seis meses e que ainda frequentava sessões do Centro de Atenção Psicossocial Mané Garrincha, ali perto, em Vila Isabel. Sua silhueta era típica de pessoas que se envolvem ou se envolveram com o crack. Na minha cabeça veio de imediato a enorme cracolândia que, atualmente, se espalha nos fundos da Uerj e se estende até o Maracanã; algo desolador. 




“Será que ela não quer o dinheiro para comprar mais pedras?”, me indagava enquanto a ouvia. Mas, ao mesmo, tempo a moça franzina ao extremo que estava na minha frente não demonstrava sinais da dependência. Usava roupas limpas, as mãos estavam tão firmes como suas palavras, mesmo transparecendo um desespero controlado. Não sei precisar sua idade. Acredito que esteja beirando os 30 anos, mas a dor estampada em seu semblante talvez tenha apagado os sinais de que é mais nova.
Quando finalmente fez o pedido, em nome das filhas, tirei uma nota da carteira e entreguei a ela, mas para minha surpresa, havia mais um pedido. Disse que eu lembrava muito o pai dela e me pediu um abraço. Um dos abraços mais tristes que já dei na vida.

Entrei no carro com o coração apertado. Ainda a vi chorando com o rosto entre as mãos e depois as levantando para o céu.

Espero, de todo coração que, sendo real toda aquela história que ela me contou com detalhes, essa moça possa resistir e seguir em frente. Como diria o Poetinha: “São demais os perigos dessa vida”. Que ela possa cuidar de suas filhas e ter um futuro bem menos nebuloso do que seu passado.

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