Participei, hoje de uma banca na Faculdade de Comunicação Social da Uerj,
onde dou aulas há 20 anos. O trabalho de conclusão de curso (vulgo
TCC) do aluno Jonas Feitosa era um vídeo de 13 minutos sobre funk.
Na verdade, sobre vertentes do funk carioca, como o “proibidão” e o "ostentação".
Não se trata de nenhuma descoberta
músico-antropológica. O tema vem sendo explorado por gente que
tenta ver além das lentes da grande mídia. Dois ex-alunos meus, os
talentosos Ludmila Curi e Guilherme Arruda já tinham feito um DOC
com este título: “Proibidão”, filme que correu o Brasil
através de diversos festivais. (trailer aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=u8_L7JxbYKQ), mas o vídeo me fez refletir. E as divagações se encontram a seguir.
As letras desse tipo de funk abordam basicamente a
realidade das favelas (ou comunidades, como queiram) e de sua gente. Vivências e
dramas que não saem no jornal ou, se saem, saem com a versão
oficial, com um quê de demonização que impede a real compreensão desses
guetos. Locais que a sociedade em geral prefere não olhar mais de perto.
“Nós estamos no problema
Nós não rende pra playboy
Nós não podemos ir na zona sul, a
zona sul é que vem até nós
Estampado no jornal toda hora e todo
instante
Patricinha sobe o morro só pra dar pra
traficante
Nós não somos embriagados
Nem em fama e nem sucesso
Por que dentro da cadeia todos somos de
processo
Tem que ter sabedoria pra poder viver
no crime
Por que bandido burro morre no final do
filme”
(Vida Bandida - MC Smith)
Autoridades civis e militares fazem o coro contra essas músicas. Dizem que as letras fazem
apologia ao crime e pedem a proibição. Afirmam, ainda, que os
chamados funks ostentação são chamarizes para atrair jovens para o
crime.
“Quando dá uma hora da manhã é que
o bonde se prepara pra Vibe
Abotoa sua polo listrada da um nó no
cadarço do tênis da Nike
Joga o cabelo pra cima ou põe um boné
que combina com a roupa
A picadilha pode ser de boy mas não
vale esquecer que somos vida loca
As mais top vem do nosso lado ficam
surpresa ganha mó moral
Se o Paparazzi chega nesse baile amanhã
o seu pai vê sua foto no jornal
Portando kit de nave do ano, essa é a
nossa condição
Olha só como que o bonde tá...
Tá pa... Tá pa... Tá patrão
Tá pa... Tá pa... Tá patrão
Tênis Nike Shox, bermuda da Oakley,
camisa da Oakley olha a situação (2x)
Caralho moleque.. Vai segura”
(Tá patrão – MC Guimê)
Letras com conteúdo erótico,
implícito e explícito, também são comuns e fazem com que muitos
classifiquem o funk como lixo cultural.
Mas independente da qualidade musical
ou “literária” não dá pra não fingir que esse fenômeno não
existe. E se existe é porque quem vive aquela situação se
identifica com o discurso dos MC's, ou pelo menos com a realidade ali
descrita.
Só ficar dizendo que não deveria ser assim
não basta.
Se o tráfico está nas letras, é porque ele existe de
fato, institucionalizado e operante (apresar das UPP's). Se a ostentação está nas letras é porque vivemos numa
sociedade em que bens de consumo são vistos como status. E se o sexo
está cada vez mais presente é porque a hiper-valorização do corpo virou valor e também uma forma
de poder.
Não convivo com essa realidade.
Não
sei o que é viver onde o Estado não chega e quando chega não é
para afagos.
Mas, quase 30 anos de jornalismo numa cidade como o Rio
de Janeiro me faz ter uma noção do quanto a chapa é quente.
O que está acontecendo em termos musicais não é nenhuma novidade. A música retrata e sempre retratou o
mundo ao nosso redor.
Não é só funk.
O hip hop, o rap, o
rock, o samba...
E desde muito tempo...
“O batuque da favela/ terminou em
tiroteio/
todo samba do barulho/ eu acho bom, mas
acho feio.
(É feio, mas é bom, Assis Valente -
1939)
“Todo dia o sol da manhã
Vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo
Quem já não o queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia
E a cidade que tem braços abertos num cartão postal
Com os punhos fechados na vida real lhe nega oportunidades
Mostra a face dura do mal”
Vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo
Quem já não o queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia
E a cidade que tem braços abertos num cartão postal
Com os punhos fechados na vida real lhe nega oportunidades
Mostra a face dura do mal”
(Alagados – Paralamas do Sucesso)
“Periferia legião, mãos à
obra
Álcool e droga tá ali, corre junto
A morte a foice atrás de mais um assunto
É 2 minutos pra arrumar
Quem tá de luto aqui nem chega a respirar
Tem que pensar mais rápido, e puxar o gatilho
Se não for ligeiro parceiro, toma tiro
Tá no limite (tá) a flor da pele (tá)
Quem é ferido com o mesmo ferro sempre fere
A arma de fogo impõe respeito
No submundo da metrópole é desse jeito
Não pense, não pisque, não dê um passo
Quem se habilita, (falô) é um abraço”
Álcool e droga tá ali, corre junto
A morte a foice atrás de mais um assunto
É 2 minutos pra arrumar
Quem tá de luto aqui nem chega a respirar
Tem que pensar mais rápido, e puxar o gatilho
Se não for ligeiro parceiro, toma tiro
Tá no limite (tá) a flor da pele (tá)
Quem é ferido com o mesmo ferro sempre fere
A arma de fogo impõe respeito
No submundo da metrópole é desse jeito
Não pense, não pisque, não dê um passo
Quem se habilita, (falô) é um abraço”
(Expresso da meia-noite – Racionais
MC's)
As três músicas acima foram gravadas
e podem tocar em qualquer lugar.
Música é expressão política. Não
se pode negar.
Três livros lançados recentemente
pelo jornalista Franklin Martins, mostram isso. O título da trilogia
é “Quem foi que inventou o Brasil”, parafraseando uma marchinha
antiga de Lamartine Babo.
De acordo com Franklin não há como
dissociar a vida do país da música.
“Ela não é mero reflexo da
política, é fruto também da dinâmica da produção cultural. Não
se trata de música engajada. A música brasileira geralmente não é
engajada, no sentido de ser uma atividade militante, embora em alguns
momentos tenha assumido esta natureza. Ela é muito mais a expressão
de algo interessantíssimo: desde o início a música popular no
Brasil vai se embicando no sentido de produzir uma crônica da vida
brasileira. Uma crônica em todos os sentidos: cultural,
comportamental, econômico e também político.” (entrevista a
Teresa Cruvinel no site 247 -
http://www.brasil247.com/pt/247/cultura/185779/Franklin-foi-a-m%C3%BAsica-que-inventou-o-Brasil.htm)
Se assim é (e parece ser) tanto faz se
é uma paródia satirizando um velho político da época do Império,
um jingle político de um presidente que prometia varrer a
bandalheira, uma letra de protesto contra a Ditadura ou um proibidão.
A realidade vai buscar voz. Ganha letra e acordes, ganha público e ganha
repercussão, independente do público que atinja.
A “bronca social”, como o próprio
Franklin, define a nova roupagem da música de protesto que está aí. Só
negá-la ou bloqueá-la não vai fazer com ela desapareça.
Há muito
a lógica e a logística da circulação de conteúdo mudaram e a
internet está aí, de portas abertas e janelas escancaradas, para
qualquer tipo de produção cultural.
Escutar, entender e buscar soluções é
muito mais eficaz do que se fazer de surdo, vociferar impropérios ou varrer tudo para debaixo
do tapete.
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