segunda-feira, 28 de março de 2016

FUNK-SE QUEM QUISER...

Participei, hoje de uma banca na Faculdade de Comunicação Social da Uerj, onde dou aulas há 20 anos. O trabalho de conclusão de curso (vulgo TCC) do aluno Jonas Feitosa era um vídeo de 13 minutos sobre funk. Na verdade, sobre vertentes do funk carioca, como o “proibidão” e o "ostentação".

 

Não se trata de nenhuma descoberta músico-antropológica. O tema vem sendo explorado por gente que tenta ver além das lentes da grande mídia. Dois ex-alunos meus, os talentosos Ludmila Curi e Guilherme Arruda já tinham feito um DOC com este título: “Proibidão”, filme que correu o Brasil através de diversos festivais. (trailer aqui: https://www.youtube.com/watch?v=u8_L7JxbYKQ), mas o vídeo me fez refletir. E as divagações se encontram a seguir.




As letras desse tipo de funk abordam basicamente a realidade das favelas (ou comunidades, como queiram) e de sua gente. Vivências e dramas que não saem no jornal ou, se saem, saem com a versão oficial, com um quê de demonização que impede a real compreensão desses guetos. Locais que a sociedade em geral prefere não olhar mais de perto.

“Nós estamos no problema
Nós não rende pra playboy
Nós não podemos ir na zona sul, a zona sul é que vem até nós
Estampado no jornal toda hora e todo instante
Patricinha sobe o morro só pra dar pra traficante
Nós não somos embriagados
Nem em fama e nem sucesso
Por que dentro da cadeia todos somos de processo
Tem que ter sabedoria pra poder viver no crime
Por que bandido burro morre no final do filme”

(Vida Bandida - MC Smith)




Autoridades civis e militares fazem o coro contra essas músicas. Dizem que as letras fazem apologia ao crime e pedem a proibição. Afirmam, ainda, que os chamados funks ostentação são chamarizes para atrair jovens para o crime.

“Quando dá uma hora da manhã é que o bonde se prepara pra Vibe
Abotoa sua polo listrada da um nó no cadarço do tênis da Nike
Joga o cabelo pra cima ou põe um boné que combina com a roupa
A picadilha pode ser de boy mas não vale esquecer que somos vida loca
As mais top vem do nosso lado ficam surpresa ganha mó moral
Se o Paparazzi chega nesse baile amanhã o seu pai vê sua foto no jornal
Portando kit de nave do ano, essa é a nossa condição
Olha só como que o bonde tá...
Tá pa... Tá pa... Tá patrão
Tá pa... Tá pa... Tá patrão
Tênis Nike Shox, bermuda da Oakley, camisa da Oakley olha a situação (2x)
Caralho moleque.. Vai segura”

(Tá patrão – MC Guimê)



Letras com conteúdo erótico, implícito e explícito, também são comuns e fazem com que muitos classifiquem o funk como lixo cultural.

Mas independente da qualidade musical ou “literária” não dá pra não fingir que esse fenômeno não existe. E se existe é porque quem vive aquela situação se identifica com o discurso dos MC's, ou pelo menos com a realidade ali descrita.
Só ficar dizendo que não deveria ser assim não basta. 
Se o tráfico está nas letras, é porque ele existe de fato, institucionalizado e operante (apresar das UPP's). Se a ostentação está nas letras é porque vivemos numa sociedade em que bens de consumo são vistos como status. E se o sexo está cada vez mais presente é porque a hiper-valorização do corpo virou valor e também uma forma de poder.

Não convivo com essa realidade. 
Não sei o que é viver onde o Estado não chega e quando chega não é para afagos. 
Mas, quase 30 anos de jornalismo numa cidade como o Rio de Janeiro me faz ter uma noção do quanto a chapa é quente.

O que está acontecendo em termos musicais não é nenhuma novidade. A música retrata e sempre retratou o mundo ao nosso redor.
Não é só funk. 
O hip hop, o rap, o rock, o samba... 
E desde muito tempo...

  


“O batuque da favela/ terminou em tiroteio/
todo samba do barulho/ eu acho bom, mas acho feio.
(É feio, mas é bom, Assis Valente - 1939)

“Todo dia o sol da manhã
Vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo
Quem já não o queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia
E a cidade que tem braços abertos num cartão postal
Com os punhos fechados na vida real lhe nega oportunidades
Mostra a face dura do mal”
(Alagados – Paralamas do Sucesso)

“Periferia legião, mãos à obra
Álcool e droga tá ali, corre junto
A morte a foice atrás de mais um assunto
É 2 minutos pra arrumar
Quem tá de luto aqui nem chega a respirar
Tem que pensar mais rápido, e puxar o gatilho
Se não for ligeiro parceiro, toma tiro
Tá no limite (tá) a flor da pele (tá)
Quem é ferido com o mesmo ferro sempre fere
A arma de fogo impõe respeito
No submundo da metrópole é desse jeito
Não pense, não pisque, não dê um passo
Quem se habilita, (falô) é um abraço”
(Expresso da meia-noite – Racionais MC's)

As três músicas acima foram gravadas e podem tocar em qualquer lugar.

Música é expressão política. Não se pode negar.
Três livros lançados recentemente pelo jornalista Franklin Martins, mostram isso. O título da trilogia é “Quem foi que inventou o Brasil”, parafraseando uma marchinha antiga de Lamartine Babo. 
De acordo com Franklin não há como dissociar a vida do país da música.

“Ela não é mero reflexo da política, é fruto também da dinâmica da produção cultural. Não se trata de música engajada. A música brasileira geralmente não é engajada, no sentido de ser uma atividade militante, embora em alguns momentos tenha assumido esta natureza. Ela é muito mais a expressão de algo interessantíssimo: desde o início a música popular no Brasil vai se embicando no sentido de produzir uma crônica da vida brasileira. Uma crônica em todos os sentidos: cultural, comportamental, econômico e também político.” (entrevista a Teresa Cruvinel no site 247 - http://www.brasil247.com/pt/247/cultura/185779/Franklin-foi-a-m%C3%BAsica-que-inventou-o-Brasil.htm)



Se assim é (e parece ser) tanto faz se é uma paródia satirizando um velho político da época do Império, um jingle político de um presidente que prometia varrer a bandalheira, uma letra de protesto contra a Ditadura ou um proibidão. A realidade vai buscar voz. Ganha letra e acordes, ganha público e ganha repercussão, independente do público que atinja.

A “bronca social”, como o próprio Franklin, define a nova roupagem da música de protesto que está aí. Só negá-la ou bloqueá-la não vai fazer com ela desapareça. 
Há muito a lógica e a logística da circulação de conteúdo mudaram e a internet está aí, de portas abertas e janelas escancaradas, para qualquer tipo de produção cultural.


Escutar, entender e buscar soluções é muito mais eficaz do que se fazer de surdo, vociferar impropérios ou varrer tudo para debaixo do tapete.


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