sábado, 20 de abril de 2019

DO LEÃO À ONÇA


O ser humano sempre teve fascínio pelo mundo animal.

Fascínio e medo.

Infelizmente, o medo sempre foi maior e fez com que o homem, armado, se transformasse, ele sim, no predador. Os bichos que não matava, prendia e exibia em circos ou zoológicos. A admiração por eles garantia as bilheterias.

Ontem vivi essa fascinante experiência de ver uma onça em ação. Eu e mais algumas centenas de pessoas. Era o “Recital da Onça”, de Regina Casé.



Tal e qual os índios Tamoios, trazidos pela leitura do texto de Alberto Mussa, a onça Regina, em quase duas horas de um domínio absurdo do palco, abre nossas cabeças para a arte, para a literatura e para o prazer. E, tal e qual os Tamoios, vai ganhando suas pintas de onça a cada aplauso, a cada olhar iluminado, a cada sorriso que brota da plateia.

A naturalidade dessa onça nos desconcerta, nos tira da posição de mero espectador, nos faz esquecer do teatro em que estamos. Regina nos pega pela mão, pelo coração. Passamos a ouvi-la, sem saber muito bem o que é texto, o que é “caco”, o que é uma conversa com a plateia, que se sente como se estivesse sentada numa sala de estar, numa mesa de bar, ouvindo as histórias daquela interlocutora envolvente e hipnotizante.

Uma coisa engraçada que sempre me perguntam quando sabem que sou primo de Regina Casé é: “Ela é daquele jeito mesmo que aparece na TV?”. E a resposta é sempre a mesma, Regina é assim. Daí juntar tanta gente, de tantas tribos, mesmo num país tão dividido, em torno de si.

Acusada, junto com a turma do “Asdrúbal trouxe o trombone” de fazer um teatro carioca, Regina mostrou, em 45 anos de carreira, que é a cara do Brasil. E os brasileiros se veem nela desde os tempos de “Brasil Legal”, quando sua trupe viajava pelo país mais profundo, mostrando a gente quase invisível que vive por lá. O Caldeirão é do Huck, mas ninguém na TV brasileira conseguiu misturar na mesma receita tantos brasis como Regina; o “Muvuca” e o “Esquenta” foram provas disso. 



Nas telas dos cinemas como ser mais brasileira do que a Darlene de “Eu, tu, eles” ou a Val de “A que horas ela volta”?

Mas é no teatro que a gente vivencia isso de perto.

Quando ela vendia ingressos das peças do “Asdrúbal” nos almoços de Natal na casa de meus avós, eu ainda não tinha idade para ir (Regina é 9 anos mais velha que eu). Quando "Trate-me Leão" sacudiu a cena teatral, eu tinha só 14 anos. Ainda bem que pude assistir a “Aquela coisa toda” e “A farra da terra” (até hoje sei de cor algumas das músicas do espetáculo). Mas desde  o delicioso monólogo Nardja Zulpério (que vi no antigo Casa Grande) estava fora dos palcos. 



Na estreia do “Recital da Onça”, porém, todo esse tempo distante do olho no olho com a plateia desapareceu assim que entrou em cena. A cada texto lido, de Mário de Andrade a Fausto Fawcet, de Guimarães Rosa a Vinícius de Morais, vimos a onça circular, pra lá e pra cá. Como se sentisse as duas únicas palavras que acompanham cada passo desse felino: bom, bonito, bom, bonito, bom, bonito...


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